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O processo eleitoral no Brasil chegou ao fim. Nesta etapa pós-eleições, este blog continuará acompanhando as análises e desdobramentos da participação dos evangélicos (e da dimensão religiosa) no pleito 2010.

domingo, 17 de outubro de 2010

O lugar da religião na discussão política

Por Joanildo Burity

Assistindo de longe ao processo eleitoral em curso – posso dizer apenas que viajei quase 500 km pra votar, em Londres! – concordo que é fundamental não jogar para debaixo do tapete o tema da religião nesse debate. Mas tenho certas dúvidas sobre a linha que demarca muito rigidamente a ideia de laicidade como única estratégia discursiva e institucional a adotar. O mundo tornou-se muito mais complexo do que comporta nosso debate local improvisado e assolado por uma canhestra cultura religiosa de nossos candidatos e candidatas. A presença pública das religiões em nosso tempo não é um atraso nem um retrocesso: é uma resposta absolutamente contemporânea a desafios e questões absolutamente contemporâneos.
O antigo é atualíssimo e não uma sobrevivência indesejada do passado. Não nos enganemos. O discurso clássico da laicidade, da pura e nua separação entre igreja e estado, do republicanismo radical, é tão inadequado para dar contas dessa situação quanto os modelos de cristandade ou “teocracia” (convenhamos: quem neste país seriamente defende isso?). Naturalmente, podemos usar esses termos retoricamente, no calor da disputa, mas não acreditemos que eles signifiquem muita coisa ainda. Se concordo que é preciso debater duramente com o tipo de discurso da direita religiosa, e que isso pode revelar uma surpreendente compreensão popular acerca da tacanhez das posições religiosas moralistas e literalistas (“fundamentalismo” é outro termo a ser evitado, jamais tendo descrito com precisão mais do que um punhado de obtusos fanáticos religiosos), a linha do debate não é laicidade versus teocracia. Este sim é um debate do século XIX! Ou uma infeliz teimosia de certa linha das ciências sociais.
Basta alargarmos por um minuto o foco para além do Brasil e perceberemos que a profundidade das transformações em curso – econômicas, políticas, sociais, culturais; coletivas e subjetivas; locais e globais – tem não somente gerado incertezas, exclusões e violências, mas também revelado as limitações de tratamentos puramente instrumentalistas, utilitaristas e racionalistas. Recomenda-se a admissão de diferentes lógicas sociais (algumas antiquíssimas, mas nem por isso congeladas num passado perdido). Dentre as mais recentes, a lógica movimentalista informada pelo discurso dos direitos, da participação e do pluralismo socio-político-cultural produziu um upgrade em vários discursos particulares. Entre estes os religiosos. E aqui, os alinhamentos são múltiplos. Se juntarmos tudo isso à compreensão de que os desafios contemporâneos vão ao ponto de colocarem em questão o que significa ser humano, onde e como começa e termina a vida, e diversas “sinucas de bico” relativas à regulação social dos corpos e prazeres e ao lugar das considerações morais na tomada de decisões no estado e nas organizações privadas, o quadro torna-se mais compreensível, embora não simples de vivenciar.
Em suma, briguemos com a direita, sim, mas não atiremos no pé: precisamos de um novo discurso sobre o lugar social das religiões e as modalidades de seu engajamento público. Isso não é um retrocesso, nem uma chuva passageira. Ainda discernimos “mal e porcamente” a diferença entre assegurar isonomia de tratamento para as religiões, garantir-lhes espaço no debate público e na prática política (na pior das hipóteses como “grupo de interesse” legítimo) e sucumbir a chantagens, acordos espúrios e concessões “multiculturais” que na verdade geram novas vítimas (desta feita os dissidentes dentro dos próprios grupos religiosos).
No debate atual não tenho dúvidas de que esta linha coincida grosso modo com a candidatura de Dilma versus a de Serra. Mas a forma como algumas reações vem sendo manifestadas funcionam, repito, no registro retórico do antagonismo político. Mas não se sustentam por um minuto como análise social que ajude a nos levar adiante no amadurecimento das relações entre religiões e estado republicano no Brasil.

Cientista politico, Fundação Joaquim Nabuco/PE.

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