Por Suzel Tunes
Deus entrou na eleição, diz a capa da revista Época do dia 11 de outubro, ainda tentando analisar a influência religiosa nos 20% dos votos dados à evangélica Marina Silva, que levaram as eleições presidenciais brasileiras a um segundo turno – quando muitos já comemoravam certa a eleição de Dilma Roussef, ancorada nos quase 80% de aprovação do governo de Lula.
Desde a apuração dos votos do primeiro turno, analistas políticos, sociólogos e cientistas da religião têm procurado entender o fenômeno. Qual o verdadeiro peso da discussão de valores religiosos sobre as eleições?
A verdade arrastada para baixo do tapete...
A revista Época levanta uma tese: num país que começa a conquistar as necessidades básicas de sobrevivência, os tradicionais temas de fundo econômico (desemprego, inflação, salário mínimo...) começam a dar lugar para o que, em “democracias maduras” é conhecido como “agenda de valores”. Temas como fé, aborto, eutanásia, pesquisa com células-tronco, ensino religioso e união civil entre homossexuais ganham relevância no debate político. É uma tese tão interessante como difícil de ser aceita, Quem teve acesso às mensagens espalhadas pela Internet, por exemplo, não viu uma discussão baseada em valores, mas um doutrinamento baseado em desinformação. Proliferaram informações falsas (como a de que Dilma seria proibida de ir aos Estados Unidos, por exemplo) e até estapafúrdias, como a de que seu vice seria pertencente a um “culto satânico” (sobre Michel Temer e o PMDB, há motivos muito mais concretos de rejeição do que uma delirante suspeita de satanismo...)
Discussão de valores? A própria reportagem da Época traz analistas que fazem uma leitura oposta: Edin Abumanssur, do Departamento de Ciências Religiosas da PUC de São Paulo, acha que a religião foi apenas um pretexto para atacar um dos candidatos. “A religião no Brasil não pesa de forma permanente na política como acontece nos Estados Unidos, onde isso é cultural”. O sociólogo Antônio Pierucci, da USP, não vê um movimento “de baixo pra cima”, em que os valores dos fiéis se impõem às lideranças políticas, mas líderes religiosos politicamente conservadores tentando manipular seus fiéis. É o que o teólogo Ricardo Lengruber chama de “voto de cajado”.
A seguir por esse raciocínio, Dilma não levaria mesmo a vitória no primeiro turno, haja vista a resistência que o projeto político do PT ainda encontra junto às camadas dominantes do país, com as quais a maioria da imprensa brasileira se alinha. Segundo a filósofa Marilena Chauí, numa entrevista à Rede Brasil Atual, Lula nunca será “perdoado” por ter combatido a desigualdade. Contra ele continuarão lutando, com todas as forças e apoiados pela imprensa, os ruralistas, inimigos declarados, e a classe média urbana, atônita diante da diminuição da desigualdade social que os faz perder seu próprio “diferencial” no corpo da sociedade. “(...) seu medo, que era de cair na classe trabalhadora, mudou. Foram invadidos pela classe trabalhadora.", diz Marilena. Os movimentos religiosos estariam apenas fornecendo munição ao projeto político da direita (ou você também acredita que a polarização direita-esquerda é coisa do passado?). Sobre a participação das igrejas na disseminação dos terrores da classe média, leia o ótimo artigo "A Pastoral do Medo", de Paulo Brabo.
Há que se destacar que, seja qual for a decisão de Marina Silva com relação ao segundo turno, ela não tem utilizado seus valores religiosos como moeda eleitoral. Sua postura ética é um alento diante de uma situação que faria os profetas do Antigo Testamento bradarem em alta voz:
"O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento. Porque tu, sacerdote, rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim; visto que te esqueceste da lei do teu Deus, também eu me esquecerei de teus filhos. Quanto mais estes se multiplicaram, tanto mais contra mim pecaram; eu mudarei a sua honra em vergonha". Oséias 4.6-7
"Afasta de mim o estrépito de seus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras. Antes, corra o juízo como as águas: e a justiça, como ribeiro perene". Amós 5.24
"Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus". Miquéias 6.8
O dia em que profetas como esses forem ouvidos, o Deus da Verdade, Justiça e Misericórdia, o Deus de todos os povos e crenças poderá entrar, de fato, na vida política do país.
Suzel Tunes é jornalista e editora da revista Entheos: Espiritualidade/Religião/Cultura/Cidadania
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