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O processo eleitoral no Brasil chegou ao fim. Nesta etapa pós-eleições, este blog continuará acompanhando as análises e desdobramentos da participação dos evangélicos (e da dimensão religiosa) no pleito 2010.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Eleições e transformação da sociedade brasileira

Por Flávio Conrado


Tenho lido e acompanhado o debate eleitoral no Brasil, mesmo estando fora. Muitos não sabem mas os cidadãos brasileiros que estão fora do Brasil, e que continuam tendo algum município brasileiro como domicílio eleitoral, são obrigados a votar ou a justificar. Os que possuem domicílio eleitoral no exterior, têm a obrigação de votar, entretanto, apenas para presidente da república. É um dever de cidadania.

Pois bem. Também tenho, por dever de cidadania e consciência política, o costume de conhecer as propostas através dos jornais, revistas e acompanhar os debates eleitorais (quando eles acontecem). Mais do que isso, procuro sempre compreender a disputa eleitoral, colocando sempre os candidatos e partidos no contexto do complexo jogo de poder e projetos de sociedade ora explícitos ora implícitos nos discursos e plataformas de governo. Confesso que tem sido cada vez mais difícil assumir posições claras e unívocas; decidir o voto é negociar entre a precariedade do sistema eleitoral e partidário e os ideais de justiça, igualdade, responsabilidade e probidade públicas e espíritos democrático e republicano.

Infelizmente, os defeitos e fraquezas de nossa arquitetura política (há anos se discute reforma política no Brasil, sem se avançar) e a lentidão da sociedade em enfrentar nossos vícios socioculturais (por ex., a contraparte da compra do voto é que exista gente disposta a vendê-lo, e assim por diante), contribuem para o adiamento da construção de um país que assegure o bem-estar de todos, calcado na dignidade e no reconhecimento da cidadania — clientelismo, corporativismo, infidelidade partidária, nepotismo, autoritarismo, elitismo, populismo, messianismo etc., são problemas que a nossa Ciência Política já escrutinou e denunciou, mas que persistência! Aos marinheiros da viagem de sempre, somam-se os novos aventureiros, ávidos por benesses e privilégios.

O protestantismo, minoritário e inexpressivo até a década de 1950, parece que continua patinando, sem encontrar (ou decidir) onde “amarra seu burro”. Salvo algumas lideranças heróicas e alguns movimentos contraculturais (ao conservadorismo e escapismo) que emergiram aqui e ali na história do protestantismo brasileiro (urgente resgatar sua memória!), fico me perguntando quando os chamados evangélicos serão mais lembrados e reconhecidos pela ética e pelo compromisso com Outro Brasil Possível, o da justiça, da igualdade, da paz, da compaixão, da dignidade, dos Direitos Humanos, do respeito, da solidariedade — todos valores do reino que Jesus veio anunciar e implantar.

Escrevi algum tempo atrás e reafirmo que estamos num momento decisivo da vida democrática brasileira onde os limites da desfaçatez política e da tibieza cidadã já foram esgarçados exigindo compromissos radicais dos atores políticos, das instituições e da sociedade com a ética e a justiça. É preciso, portanto, ler os “sinais dos tempos” com perspicácia e ousadia, e construir um movimento que refunde a sociedade brasileira na dignidade de cada ser humano e na recusa dos compromissos com os vícios de nossa brasilidade. Neste processo, o protestantismo tem a capacidade de ser uma força mobilizadora para a refundação ética da nação, não tenho dúvida. Mas antes de tudo ele tem que se reconciliar com sua história de compromisso com a liberdade e justiça social exemplificadas nas atuações de personagens como William Wilberforce, John Wesley, William Booth, Martin Luther King Jr., Desmond Tutu, entre tantos outros.

Retomo aqui algumas teses sobre o papel das Igrejas Evangélicas na Sociedade Brasileira:

1. A igreja evangélica só será relevante no país se ela se engajar de modo coerente e maduro na refundação da nação a partir de um espírito profético que se baseia na ação ética, na justiça e na transformação integral.

2. A recuperação de sua voz profética é condição sine qua non para esse engajamento e é papel da igreja evangélica ser parte da consciência moral da nação segundo os valores e prioridades do reino de Deus conforme ensinados por Jesus em Lucas 4, 16-21 e Mateus 25, 31-46.

3. A exemplaridade ética é a ponta de toque da tarefa de refundar o Brasil. A igreja evangélica só terá influência se ela for transparente e viver aquilo que prega.

4. O engajamento profético da igreja evangélica na transformação das estruturas econômicas, políticas e culturais não aliena seu papel de chamar atenção dos brasileiros e das brasileiras para um compromisso libertador com o seguimento de Jesus. Entretanto, esse chamado tem de ser feito através do diálogo e do anúncio responsável, respeitando a experiência religiosa das pessoas, sem proselitismo e barganhas.

5. A espiritualidade evangélica, centrada na oração, na leitura atenta da bíblia e na transformação pessoal (santidade) é aliada da justiça, da liberdade e da luta pela igualdade, não inimiga. É preciso insistir igualmente que a fé sem obras é morta assim como as obras sem a fé também é morta.

6. Esse engajamento pautado na ética e na justiça deve ser concretamente um compromisso com os Direitos Humanos fundamentais, os Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais.

7. A participação cidadã na construção de políticas públicas que garantam a todos os brasileiros e brasileiras as condições mínimas de vida digna e a luta pela radicalização da democracia precisa ser a linha de frente desse compromisso. Chega de barganhas e currais eleitorais, de “irmão vota em irmão” de direita e de esquerda.

8. A metodologia de atuação precisa ser a mobilização e apoio à organização dos cidadãos e cidadãs em movimentos e organizações populares que reivindiquem e controlem o Poder Público. Estratégias e esperanças que vem pelo alto (a grande política e o messianismo) solapam a transformação necessária no país, está mais do que comprovado; a criatividade e a revolução estão na pequena política do orçamento participativo, no monitoramento das políticas públicas, na construção e no apoio de movimentos de defesa de direitos etc.

9. Deve ser também o de promover uma grande e profunda discussão pública sobre os caminhos da formas democráticas e republicanas que adotamos. Que tipo de democracia temos e queremos é a pergunta que deve nortear a construção de um verdadeiro pacto social. Essa discussão deve ser realizada, preferencialmente, através de assembléias populares, nos bairros, com uma preocupação de formar cidadãos e cidadãs que possam compreender os mecanismos das estruturas de poder no Brasil. É preciso desocultar as relações perversas entre poder econômico e poder político. Além disso, um profundo debate sobre a política e sobre as formas de representação e transformação do país não pode deixar de tocar nos sistemas de subalternização dos afro-descendentes, das mulheres, dos indígenas e de outros grupos minoritários.

10. Como forma de demonstrar seu compromisso com a justiça e os direitos humanos, as igrejas evangélicas têm de se tornar espaços de construção da paz justa — promover, através das suas estruturas e programas, a educação para a participação cidadã, para a exigibilidade de direitos, para a mediação e transformação de conflitos. Mais agentes de justiça e paz nas comunidades e cidades; menos congressos de louvor e adoração — Misericórdia quero, não sacrifício! (Mateus 12, 7)

11. É necessário um profundo compromisso e engajamento no desenvolvimento comunitário buscando a encarnação na realidade local, com sentido missional, a fim de transformar os (des)caminhos do bairro, da comunidade. Nesse processo, as igrejas locais devem promover desenvolvimento integral com a comunidade e não para a comunidade ou em nome dela.

12. Em todos os níveis de atuação, as igrejas e organizações evangélicas deveriam assumir como imperativo a parceria, a cooperação, a aliança com atores sociais e políticos que estão promovendo ou dispostos a promover a justiça, a paz e a cidadania, superando preconceitos e exclusivismos. A cobeligerância é um princípio teológico que não pode ser esquecido.

13. As igrejas evangélicas poderiam assumir, nesse processo, três pontos de partida intransigentes: a segurança alimentar e nutricional de cada brasileiro/a (Direito à Alimentação), respeito aos direitos das crianças e adolescentes (Direito à Infância e Adolescência) e a eliminação de todas as formas de violência (Direito à Vida e à Segurança). Creio que esses compromissos são coerentes com o chamado bíblico para garantir a dignidade de cada pessoa humana, especialmente dos mais vulneráveis; com a trajetória de ação social da Igreja Evangélica brasileira; e com os recursos e potencial para realizá-los.

Que Deus nos ajude!

Flávio Conrado é editor da Revista Eletrônica Novos Diálogos.

Fonte: Revista Novos Diálogos: http://www.novosdialogos.com/

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