O que temos neste espaço:

O processo eleitoral no Brasil chegou ao fim. Nesta etapa pós-eleições, este blog continuará acompanhando as análises e desdobramentos da participação dos evangélicos (e da dimensão religiosa) no pleito 2010.

domingo, 7 de novembro de 2010

A investida do timbre religioso

Existe física cristã ou álgebra muçulmana? O 'surto de fé' que abala candidatos e contamina campanhas não fica só na política
Por Sérgio Augusto
Foi duro de aguentar, mas acabou. Aleluia!
Com o fim da propaganda eleitoral acabou também a tartufaria, a inacreditável guerra santa entre Dilma Rousseff e José Serra, o show de contorcionismo ideológico e oportunismo político em que se transformou o segundo turno das eleições presidenciais. Noves fora a escolha dos dois vices, a deslavada guinada religiosa de Dilma e Serra foi o ponto mais baixo de uma campanha com muito Jesus no coração e poucas questões relevantes sobre a mesa.
O aborto é uma questão relevante, mas não sei se mais importante e urgente que a educação, a economia, o meio ambiente e outros tópicos negligenciados ou ignorados pelos dois candidatos, que, de olho no butim eleitoral de Marina Silva, se renderam a uma demagógica disputa para ver quem era mais cristão, mais devoto, mais "a favor da vida". Pareciam concorrer à sucessão de Bento XVI ou do Bispo Macedo, não à Presidência da República.
A pantomima diversionista já definhava, na reta final da campanha, quando o papa entrou em cena, com um conselho aos católicos brasileiros: não ajudem a pôr no Planalto quem defende a descriminalização da prática do aborto. Como o aborto fora insistentemente condenado pela petista e pelo tucano, nas últimas semanas, a tardia e inútil conclamação papal ficou parecendo uma manobra do Vaticano para não deixar o espaço político à mercê da concorrência, uma demonstração de força dirigida aos evangélicos.
Em pleno surto de religiosidade de Dilma e Serra, li, em formato Kindle, o mais novo livro do filósofo e neurocientista Sam Harris, The Moral Landscape (A Paisagem Moral), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos pela Free Press. Mais oportuno e inserido no contexto, impossível; principalmente no contexto das eleições americanas da próxima terça-feira, muito mais influenciadas por quizilas religiosas que a nossa.
É uma longa reflexão sobre os limites da religião, qualquer religião, para discutir e regular assuntos de ordem moral e decidir quais valores humanos mais nos dignificam, e uma defesa da autoridade moral da ciência para entender e explicar racionalmente nosso comportamento, nossas maneiras de agir e pensar.
Harris, um dos precursores do Novo Ateísmo, junto com Richard Dawkins e Daniel Dennett, já teve duas obras traduzidas no Brasil: Carta a uma Nação Cristã e A Morte da Fé. Sua intenção desta vez é iniciar uma conversa sobre como a ''verdade moral'' pode ser entendida no contexto da ciência. Por acreditar que a moral é algo indissociável do ''bem-estar das criaturas conscientes'', que o bem-estar depende inteiramente do que acontece no mundo e no cérebro humano, e que as descobertas científicas quase sempre colaboram para ampliar ao máximo o nosso bem-estar, propõe que se reconheçam os cientistas como autoridades também em questões morais. A paisagem do título é um espaço hipotético, com picos (onde o bem-estar é provável) e vales (onde o sofrimento é possível) habitados por distintos modos de pensar e comportar-se, diferentes práticas sociais e códigos de ética, diversas formas de governo etc.
Assim como não existe física cristã ou álgebra muçulmana, não faz sentido que exista uma moral cristã ou muçulmana, provoca Harris. Para ele, as ideias nas quais as religiões trafegam são intrinsecamente divisionistas, repressoras e não raro insensíveis ao sofrimento humano e animal. O homem-bomba nasceu numa mesquita, a mutilação da genitália feminina na Somália tem raízes religiosas, as fogueiras da Inquisição foram bancadas pelo Vaticano.
O Vaticano, insiste Harris, se preocupa mais com a contracepção do que com o estupro. "Isso é uma total inversão de prioridades que desvirtua e amesquinha qualquer discussão moral proposta pela Igreja", cujas práticas, reitera, "não maximizam o bem-estar humano."
Certos valores produzem fatos que podem ser compreendidos e explicados cientificamente. Fatos que transcendem as crenças religiosas e a cultura porque são "fatos de saúde física e mental". Câncer é câncer na Califórnia e no Chade; esquizofrenia é esquizofrenia em qualquer lugar; idem a compaixão e o bem-estar. Com menos vela e mais neurociência e psicologia, acredita o filósofo, saberemos mais sobre nossas emoções, nossos impulsos e os efeitos de leis específicas e instituições sociais nas relações humanas.
Os cientistas não são santos, e Harris tem consciência disso. Já se meteram em inúmeras enrascadas imorais ? justificaram a eugenia da raça, o genocídio, a tortura, o racismo, o colonialismo, a inferioridade da mulher, inventaram armas biológicas, químicas e nucleares, métodos de persuasão para manipular a opinião pública e incentivar o consumo conspícuo, e todo um arsenal tecnológico para controlar as pessoas e a economia ?, mas também nos deram engenhos maravilhosos e instrumentos fundamentais de análise e pesquisa.
Muitos neurobiólogos já estudam a evolução da moral, mas o objetivo de suas pesquisas é apenas descrever como os seres humanos pensam e se comportam, tranquiliza Harris. "Ninguém espera que a ciência nos diga como devemos pensar e comportar. A ciência, oficialmente, não toma partido em controvérsias sobre valores humanos." E que assim continue. Amém.

Nenhum comentário:

Postar um comentário